queluz – uma nova visita

24/01/2009
22/07/2023

um pouco mais de 14 anos separam essas duas datas. a ligá-las, porém, o mesmo evento: uma mistura feita de asfalto e uma porção de sentimentos, ora conflitantes, ora consoantes, e como não poderia ser diferente, uma bicicleta.

a montaria já não era mais a mesma. silverina, nome dado a ela “post mortem”, haja vista tê-la vendido em algum momento perdido entre 2011 e 2012, foi a companheira da primeira ocasião. comentava com os outros “três mosqueteiros” da nova empreitada como fora possível concluir tal trajeto com a configuração que ela trazia. na época as transmissões não ofereciam uma gama tão ampla de possibilidades como hoje: o segredo era um só – amassar barro, já que girar não era opção. teria eu o mesmo êxito, caso tivesse feito o percurso com ela? lidamos com o imponderável aqui. o fato: 14 anos se passaram e eu tinha muito mais consciência do que era um treinamento, bem como uma maior “somatognosia” – anos registrados em uma ferramenta, apontando picos, vales e platôs de desempenho, tudo isso faz com que tenhamos essa percepção mais aprimorada de nosso organismo.

meu companheiro da jornada anterior tornou-se um aposentado. até instiguei-o a se inscrever, e sendo ele sem noção como sempre foi, quase o fez. teria sido no mínimo curioso revisitar aquelas estradas com o sr. “sierra november”.

claro que essas histórias não começam no dia da pedalada: MESES antes do evento já havia o burburinho. o que tornou o evento mais particular foi o fato de ser o 20o. aniversário da rota. 2009 tinha sido apenas a 6a edição do evento, que na ocasião era realizado pelo audax brasil – hoje audax sp – e terminava em barra mansa, ou seja, invadíamos paragens fluminenses, além de percorrermos 17 km a mais justamente por isso. a releitura do trajeto fez com que ele fosse encurtado em 16 km, mas em hipótese alguma isso o tornou mais fácil: as inúmeras e infindas tristezas e raríssimas alegrias seguiam praticamente inabaladas para todos os intrépidos.

inscrição feita. o próximo momento de terror é o de arrumar hospedagem. terror é claramente uma ligeira “licença poética”, mas até que faz sentido pensar assim. em 2009 a foto que tirei, com todos os randonóias – expressão que surgiu recentemente – reunidos frente à pousada beira-rio, aparentava ter coisa de menos de 50 pessoas. o evento comemorativo dos 20 anos levou mais de 180 ciclistas para a cidade. dado o tamanho e a infraestrutura um tanto quanto precária de queluz, não seria de todo errado pensar que deixar o tema para depois significaria uma potencial dor de cabeça.

conversando com outros noionnées (nóia + randonnée – os neologismos bem como as justaposições não param), a realidade seria de que já não haveria mais alojamento disponível. saquei da cartola o telefone do estabelecimento em que havia ficado na primeira ocasião e tal como antes, um simples e rápido diálogo já foi suficiente para sanar o problema. o mesmo canal foi passado para demais noionnées, que igualmente resolveram a questão.

o que faltava então? esperar. treinar. a temporada de pedais idiotas estava se abrindo justamente por conta desses 200 quilômetros. nisso fiz a famigerada “volta do nogueira” – que por sinal já escrevi a respeito, mas em sua versão “kids”, ou seja, faltando 50 km para inteirar os seus 220 – e “romeirito”, roteiro que em minha primeira tentativa acabou sendo uma verdadeira operação fiasco em virtude de uma desidratação violenta, tanto que fui resgatado no meio do evento. (hoje eu rio, mas no dia foi um desastre.)

o meio de transporte: isso ficou por conta da @olhardedescoberta. fez-se uma espécie de “acordo tácito”, e ela fez parte do trecho de ida, mais exatamente a saída de gotham city. é engraçado que sempre haja alguma excepcionalidade nesses eventos… contratempos na hora de desmontar algumas coisas nas bicicletas, ou ainda errar saídas ou alças de acesso. some-se a isso a cortesia paulistana que é o adorável trânsito típico de sexta-feira às 6-7 da noite. melhor não poderia ser, não é mesmo? logo, um trajeto de ida que deveria ser mais ou menos rápido se transforma em uma expedição, quase que com direito a um desce-sol-sobe-lua no meio. (não poderia deixar de mencionar o fato de que se não fosse a necessidade de voltar ao apartamento para buscar alguma coisa que agora já não me recordo o que era, teria feito a prova de tênis. isso seria algo bem interessante, para não se dizer o oposto: visualizo a tal coisa e me dou conta de que “os calçados que fazem clop-clop” haviam ficado em casa. wunderbar!)

— olá, pousada atenas!

é evidente que eu não me lembrava desse detalhe: a quantidade absurda de caminhões passando na dutra. consequência? uma noite excelentemente mal dormida, descontando a ansiedade advinda do evento que viria a seguir, da mudança de rotina, do travesseiro meio bem precário. no fim, parece que a gente tem essa tendência a sublimar essas coisas todas quando a experiência, a despeito desses inúmeros perrengues, vira algo positivo (lembram-se do comentário ali em cima sobre a mistura de sentimentos contraditórios?).

chegamos à pousada. rostos conhecidos de futuros noionnées. sim, futuros, porque até então não haviam passado pelo crivo oficial de um BRM. apenas os “brovets” – os brevets dos brothers. papo que vai, papo que vem, bagagem que se agiliza, bicicleta que sai de seu estado desfigurado para voltar a ser um veículo… devidamente estabelecidos, agora era só ajustar os detalhes e… esperar um pouco mais. (tudo na vida é espera. proponho um exercício para você que me lê: faça uma edição mental do filme da sua vida, descartando tudo que é espera. quantos minutos ele terá? será uma coletânea a la videoclipe da red bull?)

café da manhã. sono. rotina afetada. mais um aspirante a randonóia aparece. alguns rostos desconhecidos, mas investidos na mesma causa. expectativas, risadas, preocupações. corrida contra o tempo. “leve desespero que me leva daqui”. primeiro desafio do dia: a mesma rampa de paralelepípedos da ocasião anterior. que saudade, só que não – que se frise: a rampa era durinha, boa para dar um susto leve no músculo. igreja da matriz. mais rostos conhecidos. mais conversas e expectativas. vistoria feita. alívio. ora vejam uma bomba de ar! pneu devidamente calibrado. partidas em ondas. 7 em ponto, primeira leva. 5 minutos depois, a segunda. por fim, a minha. primeiro desafio do dia, do mesmo jeito: a subida após a linha do trem (ah! olá paraíba do sul!). a triagem inicial do dia já faz com que a rodovia fique colorida. observações:

– as reclinadas sumiram da cena;
– não vi gente de contra-relógio, diferentemente de 2009;
– a queda de barreira foi enfim reparada!

é engraçado como o relacionamento com o início da prova se parece com todo e qualquer relacionamento: aquela lua de mel, só beijos e abraços e afagos e palavras dóceis e risos e que tais. traduzindo: entre queluz e areias era só alegria, ou seja, descida. o leitor é assaz perspicaz e sabe que o que isso significaria na volta. interessante notar que eu pouco ou nada me recordava do trajeto, a menos de alguns detalhes. o mirante a caminho de areias, por exemplo, é algo que me passara batido. alguns ciclistas pararam lá para apreciar a vista. para mim, o tempo urge e não me faz sentido parar para essa contemplação – a menos que estejamos passeando e sem muito compromisso com horário. obviamente que há gente que vai me recriminar. a questão já vem de longa data, precedendo meu retorno à bicicleta – assim já o fazia quando eu era mais próximo de vital, aquele do sonho de metal.

de uma coisa eu me lembrava: as seções de paralelos. continuam odiosas como o de costume. que se frise: essas seções não chegam aos pés do relato do tim krabbé, quando este comenta a respeito dos pavés das estradas belgas. reza a lenda que o melhor nessas horas é passar rápido por esses trechos. me custa crer que isso é um fato. porém, tentarei numa próxima vez. voltando… depois desse momento quase lúdico, com uma manhã que parecia preguiçosa no seu amadurecer, chegamos ao primeiro ponto de controle. a cena é a usual: os apressados, os normais, os relaxados. eu me incluo no segundo grupo: desapeia, estica, dá cabo dos trâmites protocolares, ida ao pip-stop, “partiu? partiu!” e lá vamos para o 2o. quarto da jornada. aqui, tal qual em 2009, se repete a cena: a formação de um pelotão. aliás, vale ressaltar: esse trecho é o único momento em que isso é possível. passado o segundo PC, o roteiro se torna um verdadeiro plano… inclinado.

a partir desse momento se estabelece o “quarteto fantástico”, que seguiria assim até praticamente o fim do evento – ele só veio a se desfazer nos últimos 15 km, precisamente no início da subida do mirante de areias. é intessante como esses grupos ad hoc se formam. mais interessante é que volta e meia esses vínculos ocasionais se consolidam e acabam por transcender esse ambiente. divagações à parte, estamos a caminho do PC com cerveja zero e lanchinho. essa cerveja acaba caindo como uma luva: primeiro por estar gelada e segundo por dar uma bela quebrada na ingestão ad nauseum e ad infinitum de açúcar – chega uma hora em que o que há em mim é sobretudo fastio – não foi à toa que o churrasquinho de linguiça do PC3 de SAP/CdJ tenha caído redondo (mas essa já é outra história, como falava o narrador ao fim dos filmes do conan).

o trecho entre os PCs 2 e 3 seria a parte mais dura do circuito, quer na ida, quer na volta. o que torna esse roteiro particular é precisamente o fato de que não se formam pelotes e de que não há estirões de plano. das duas, uma: ou você está subindo, ou você está descendo. e mesmo descendo o momento de alegria é um barato tão fugaz que quase desanima, já que imediatamente após vem uma nova tristeza. impressiona como isso afeta o mental: tal como em bertioga, ali na casa dos 170 km, eu já estava no mínimo de saco cheio, querendo tão somente terminar o quanto antes a prova. não era uma questão de físico, posto que me sentia bem – ali em cima eu falava sobre a “somatognosia”: as longas distâncias levam o ciclista a se transformar em uma máquina de “endurance”. o desconforto advém do percurso extremamente truncado, aquela coisa que não rende, não desempaca, não avança, mas também não retrocede. tal qual uma viagem de ônibus que fiz em minha adolescência, era como se estivéssemos em uma busca por um alvo móvel: nós em marcha, e a cidade de destino a nos escapar.

PC3. the worst toilet in scotland. ([scottish accent] – “some people hate english. i don’t. they’re just wankers. we, on the other hand, are colonized by wankers. can’t even find a decent culture to be colonized by.”) ou algo bem perto disso. fora o detalhe do acesso ao banheiro: para tomar um rola e ir ribanceira abaixo era mais fácil do que roubar doce de criança. trâmites protocolares, conversa de boteco – aliás, uma birosca com um B bem grande pra você -, água, isotônico, lanchinho “roubado” do posto de controle anterior e a pouca fome sendo bem sincero, alguns minutos de descanso, rostos conhecidos chegando e lá vamos nós para a metade final.

retomadas depois de uma parada quase sempre são uma luta: contra a preguiça, contra o cansaço que começa a se instaurar, contra os músculos enrijecidos… comenta-se que uma parada não pode ter mais do que 15 minutos. conto nos dedos as ocasiões em que paradas em pontos de controle tenham durado menos do que isso. além do mais, aqui não se almeja um lugar na “elite da vaidade”, e eu estou muito de boas com a idéia de simplesmente chegar. (um evento noionneur difere de uma competição. quem leva a coisa para esse lado está a desvirtuar por completo a proposta do negócio.)

às vezes eu acho que as organizações desses eventos parecem fazer essas traquinagens de propósito. por quê? porque (quase) sempre depois de uma parada há um trecho com subidas. quase uma tara besta desse pessoal, ou quiçá um sadismo tácito. vai saber. os quatro intrépidos seguíamos a jornada, cumprimentando os colegas que se avizinhavam do terceiro PC. a cena se repetia até que tornaram-se raras essas pessoas. ao mesmo tempo, as tristezas davam-nos o ar da graça, cada uma mais infeliz que a outra. o leitor e colega de causa deveria imaginar que após uma tristeza viesse uma alegria, mas.. qual o quê? em alguns momentos parecia que estávamos em uma espécie de fenda espaço-temporal, onde a subida embalava e a descida retardava a bicicleta. como? do mesmo jeito que esse fenômeno inexplicável acontece na descida que de uma rodovia desativada que dava acesso à rod. gabriel bueno couto, nas cercanias de itu: sim, uma descida em que a bicicleta não saía do lugar.

foi nessas ocasiões ou em algum outro momento memorável que surgiu a expressão que anda a rondar todo e qualquer evento ciclístico dos últimos tempo: um pedal de subidas e roladas. claro que a expressão surgiu não sem uma sequência igualmente memorável de risadas. agora, era rolada de tudo que é jeito: de baixo pra cima, de cima pra baixo, de lado, na cara… a gosto do freguês, ninguém pode negar.

do PC 3 para o seguinte começou a rolar um flerte com o conceito de “wardrobe malfunction”, ou seja, a temperatura aumentava a ponto de me fazer repensar se o que eu trajava na hora não estava um pouco acima do desejado. a pausa para almoço de um dos cavaleiros também contribui para essa sensação. com isso, o que restava era atacar o isopor com breja zero e “roubar” uns lanchinhos enquanto o nobre se refestelava em um restaurante com iguarias típicas dos tropeiros.

alguns rostos conhecidos chegavam, pose pra foto do grupo todo, “bora? bora!”, e enfim pegamos nossas montarias e voltamos para rodovia. lá pelas tantas, um outro cavaleiro se manifesta, relatando também uma impaciência: em um primeiro momento por conta das alegrias que em pouco ou nada correspondiam às tristezas. adaptando o mote do “dougrão pedala”: um pouquinho sofre mesmo. um pouco depois disso, e aqui é possível que minha memória possa estar me traindo (os meus olhos já me traíram faz tempo, aliás), já chegava o penúltimo ponto de controle.

penúltimo PC. um pouco menos de 50 quilômetros, que por uma conta de papel de pão, seriam cumpridos em 2 horas ou algo em torno disso. é provável que essa tenha sido a 2a parada mais longa do dia. o cansaço já era patente, e em mim num primeiro momento o que havia era expectativa: como seriam essas praticamente duas horas de subidas? água e isotônico nas garrafas, o lanche “roubado” do ponto de controle anterior agora devidamente ingerido – meio que a pulso, posto que fome é algo que não ocorre nessas pedaladas -, trâmites protocolares realizados… como sempre se diz: dura a dor do parto, mas precisávamos partir.

assim o fizemos, e assim se repete a tragédia: após uma parada, uma nova rolad… digo, uma nova subida. e sobe, e sobe, e sobe, e sobe mais um pouco, e desce – mas um desce que não vale nem meio sobe -, e sobe de novo… lá no início eu falava sobre aquele ar magistral, a manhã e sua preguiça em amadurecer, aquele paranauê meio etéreo, mas agora, às 3, 4 da tarde o que havia era raiva e desespero. só tapa na cara, relacionamento que chega ao fim, ódio e rancor e cansaço e vontade de terminar logo. e claro: subidas.

uma coisa NINGUÉM pode negar: o visual do mirante de areias com a tarde que já começava a se despedir era algo digno de roubar o fôlego. de novo não há tempo para fotos e curtição de paisagem: o que há em mim é sobretudo vontade. vontade de concluir essa rota, de botar as mãos na medalha e no certificado, de dizer “já deu”, mas de ao mesmo tempo e algumas horas depois dizer que no ano seguinte estaria de novo nessa cidade, para fazer pela terceira vez esse brevet.

do meio da rampa do mirante em diante o quarteto se desfez. por alguns instantes virou uma viagem solitária, com minha pessoa e minha montaria singrando pelas curvas da “nesralla rubez”. um arremedo de alegria no meio de tanta arrelia: a tela do computadorzinho de bordo dizia que faltavam poucas subidas. e a cada tristeza deixada para trás, uma ligeira vendeta se seguia. até que a última do dia chega, seguida por uma alegria que, no início da jornada quase desclassifica um colega por esse ter deixado seu “passaporte da alegria” cair na rodovia. a última descida do dia. “ACABÔ!” bahhh! qual o quê! bastou cruzar o pontilhão e a linha do trem e virar à esquerda para dar de cara com uma total falta de respeito! muito cruel a cerejinha do bolo: a rampa rumo a igreja da matriz. uma sem-vergonhice sem par isso foi. minha cara de revolta era ímpar. (obviamente que agora eu rio disso tudo, mas na hora a última coisa que achei dessa situação foi graça. hahah)

Am Ende zu Hause. passaporte carimbado, prova concluída, medalha no peito, cara de meio contrariado, sabe-se lá por quê. certamente os tais sentimentos contraditórios ora citados. um copo do “néctar dos deuses” – que caiu muito bem, diga-se de passagem – e uns baldinhos de canjiquinha, que também vieram muito a calhar.

daí em diante era só o acompanhar dos inúmeros rostos que chegavam para concluir com sucesso – ou não – a prova. acho que o comentário que o pessoal da organização fizera lá em 2009 segue sendo real: um 300 disfarçado de 200. hoje eu diria emendaria: há brevês notoriamente menos complicados, mas no caso de queluz o tempo é quase justo, ou seja, um passo em falso e não se completa o percurso em tempo hábil.

o que resta agora? esse compilado de palavras, um punhado de imagens, alguns outros brevês por fazer e provavelmente uma repetição dessa saga. outubro está quase na esquina. conseguem ver?

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It's all about two wheels, being them bicycles or motorcycles.
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3 Responses to queluz – uma nova visita

  1. Seu relato ficou incrível!! Eu estava com muita saudade de ler os seus escritos. Você leva muito jeito para isso!

    Agora, não aparece nem a foto nem a filmagem para mim. O que será que aconteceu?

    • rennrad says:

      esse foi mais rápido e mais “fácil” de escrever do que o primeiro, talvez pela quantidade de registros em mídia.

      sobre as imagens e/ou links quebrados: confesso que não averiguei se tudo estava ok depois da publicação. pra mim estariam: os vídeos foram subidos como “não-listados” no yt. 🤷🏽‍♂️

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